Nossos perigosos desejos cinematográficos

Fernando Ferrone
4 min readSep 7, 2019

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Assisti Bacurau. E a sinopse — sem spoiler — é a seguinte: gringos vêm ao Brasil para um safari meio diferentão e… a coisa não termina como planejado. O filme não é de todo mau. Tem um quezinho meio vintage que às vezes cansa um pouco, umas cenas mais explicativas do que a gente gostaria, umas referências ao mundo extra-filme que me parecem forçar a barra um pouquinho. Mas só. Nada que atrapalhe a diversão (se você gosta de um filme à la Tarantino) e a reflexão (se você está com um tiquinho assim de vontade de conversar sobre uns temas bem atuais). Para além do roteiro, as atuações são muito boas e a direção de arte também. Fotografia, som, etc e tal são coisa fina, do ponto de vista técnico. A minha resenha sobre o filme termina aqui.

Divulgação

Daqui pra frente, eu quero fazer uma crítica à uma resenha sobre o filme. Eduardo Escorel, em Piauí, resolveu falar do filme partindo de uma crítica a uma outra crítica sobre ele, feita por Arnaldo Bloch, em O Globo. Vejam só a que pontos chegamos: eu falando de uma crítica a uma outra crítica.

Mas é por um bom motivo. Há certas práticas no jornalismo que têm que acabar.

Uma delas é a postura de Escorel diante de Bloch. Escorel não compartilhou do entusiasmo de Bloch pelo filme. Mas, mais grave, ele ficou surpreendido e amedrontado pela “agressão verbal e a ameaça do cronista dirigidas a quem, por hipótese, não compartilhasse seu entusiasmo — além de visto como estúpido, o infeliz estaria condenado ao precipício.”

É muito difícil acreditar que um jornalista que, segundo o próprio Escorel, seria “experiente, e esclarecido”, e “a quem costumo [ele] ler com prazer” possa tê-lo amedrontado. Surpreendido, vá lá, que é a surpresa senão o despreparo? Amedrontado, francamente… De que estofo é preenchido o crítico literário pra se amedrontar com uma crítica entusiasta de um filme?

Mas eis que, na saída da sessão, “cabisbaixo”, Escorel encontra, para seu “alívio” um amigo e — surpresa — é amparado ao invés de receber uma agressão ou um convite a uma viagem ao inferno. Com esse amigo pôde trocar “breves impressões sem grandes discordâncias”. Nesse alegre palrear, eles chegam a um acordo: o filme os parece “um elogio à barbárie”.

Vejamos: um elogio é algo que pressupõe uma intenção. Uma intenção é anunciada ou pressuposta. Se é anunciada, basta apontar onde ela se encontra na narrativa.

– Ei-la ao trigésimo-oitavo minuto, acolhedores amigos! Eis a intenção manifesta! Ó, proteja-me, musa!

Escorel não se dá ao trabalho de apontar onde está evidenciada a intenção.

Detalhe da coluna de Escorel na piauí

Mas, claro, a intenção pode ser escamoteada. O que seria de se esperar, já que se trata de uma horrenda intenção como deve ser a intenção de “elogiar a barbárie”.

Pois bem, em que consiste a intenção de elogiar, nesse caso?

Eu, sinceramente, não sei. No filme, a violência que triunfa, a violência do povo de Bacurau, é uma reação à uma violência externa, uma violência que não responde à provocação alguma por parte de Bacurau. A violência externa é vil em seus motivos. Como responder a uma violência dessa natureza? Dando a outra face? Escrevendo um artigo denunciando essa violência que “surpreende” e “amedronta”? Recorrendo ao poder público que diversas vezes se mostrou não somente omisso, mas aliado aos invasores? O saldo do embate entre as duas violências é morte e destruição. Que elogio pode haver numa violência onde as perdas são tão grandes?

Mas a grande (contra-) lição de como não se fazer uma crítica vem do maniqueísmo mal disfarçado de Escorel quando ele denuncia a aliança da “população” de Bacurau com o “chefe dos bandidos locais”.

Aqui o crítico se mostra em todo seu esplendor. Como um cineasta ousa retratar um criminoso (arrrgh!) que volta para sua cidade natal para rechaçar assassinos americanos e ingleses (o “ingleses” fica por conta de Escorel, porque nenhum invasor é súdito da Rainha)? Os criminosos são maus. A população é boa (embora use psicotrópicos poderosos…). Não se deve misturá-los! Fazer isso seria “apelar aos instintos mais baixos do telespectador”. Protejam o telespectador, pelo amor de Zeffirelli!

Caminho ao final dessa crítica à crítica crítica com essa obra-prima da preocupação sincera do crítico para com nossa segurança:

O que há em Bacurau de particularmente inquietante é a exaltação feita à parceria entre o povo desassistido e os bandidos para enfrentar assassinos diletantes estrangeiros. Na conjuntura política atual do Brasil, com o país governado por um presidente errático de extrema direita cujo filho mais velho, atual senador da República, promoveu quando era deputado estadual homenagens a suspeitos de integrar milícia conhecida como “Escritório do Crime”, e empregou em seu gabinete familiares do ex-capitão do Bope, considerado um dos chefes dos milicianos, a complacência face a essa promiscuidade é imprudente e perigosa, podendo estimular vários tipos de ações violentas. [grifo meu]

Que alguém nos proteja de nossos desejos cinematográficos!

Bacurau-tesoura

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Fernando Ferrone
Fernando Ferrone

Written by Fernando Ferrone

Escritor, paulistano de adoção, autor do romance à deriva (2017, publicação independente) e de A Longa Noite de Bê (Mocho Edições, 2021).

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